segunda-feira, 18 de junho de 2012

"Meu" bem-te-vi

Sempre pousava na minha janela, um bem-te-vi. Havia um horário certo. Ele cantava daqui, outro respondia de um outro local. Passava alguns instantes pela manhã bem cedo, ia embora, e retornava para mais outros instantes no final da tarde. Não sei se era o mesmo. Para mim, era. Até comecei a sentir falta dele e do canto do outro quando eu não podia estar em casa no horário dele. Convenci, portanto, de que o bem-te-vi era meu. Afinal, pousava sempre à minha janela!
Um dia, deixei alguns pedaços de pão para enfastiar meu querido bem-te-vi. Com o tempo, passei a deixar quase todo dia. Antes de sair pela manhã, deixava os farelos de pão na beirada da janela. Quando voltava, no fim de tarde, não tinha farelos e o bem-te-vi estava lá. Cantava, esperava o outro, anônimo mas que deveria ter uma janela para ele e as mesmas cores, cantar e cantava novamente. Não tardava e ia embora. Sem se despedir nem nada. Considerava-o meu, mesmo assim.
Certo dia, veio uma andorinha e mais outra. E meu bem-te-vi não veio. No outro dia, vieram as andorinhas e mais outras andorinhas. E vieram pardais e pombos. Deixei de colocar os farelos de pães na janela. As aves eram tantas e subiam pelo telhado, invadiam a minha casa. A vizinhança já comentava e estranhava aquele tanto de aves pelas redondezas nunca antes vistas. O fato é que as tais andorinhas e os famigerados pardais não cantavam, faziam um barulho que ficava entre o histerismo e a loucura. Disputavam cada palmo do meu telhado! A rivalidade caía noite adentro. O silêncio havia se tornado um som raro em minha casa.
Passei a deixar a janela fechada. Não me interessava aquelas andorinhas, pardais e pombos. Eu queria ver o bem-te-vi.
Nunca mais vi o bem-te-vi. Nunca mais. Quando o considerei mais meu, foi quando o perdi.
Hoje, pela manhã, antes do céu clarear por um todo, escutei um bem-te-vi e outro responder. Meus ouvidos mal acreditavam no que ouviam, arrepiei-me todo. Fiquei na cama, de onde escutei o primeiro canto. Escutei o eco. Escutei de novo. Bem de perto. Não tive vontade de ir à janela. Fiquei imóvel, imaginando os seus gestos, a sua atitude juntando-se ao seu canto e ao canto do outro, anônimo e não por isso menos encantador.
Na verdade, ele nunca foi meu. Eu devia ter deixado a coisa acontecer naturalmente, sem ter que tomar-lhe como meu. Talvez, ele nem saiba minha existência. Talvez, ele nem mesmo saiba o que é existência. E é isso que o deixa ainda mais fascinante.
Canta, bem-te-vi. Canta, bem-te-vi do outro canto.
Devagarzinho embalando o meu início de manhã.
Hoje, então, fui outro.

Anêmico

Na sexta passada estive no consultório. Depois das perguntas casuais, desabafei:
- Doutor, estou toda hora cansado e não consigo fazer nada do que fazia. Nem escrever mais consigo. Aliás, escrever se tornou um sacrifício. Me sinto mal quando não escrevo, mas também me sinto mal quando escrevo. Então, vê o tamanho do meu cansaço! Nada me apetece!
Continuei esta lamúria por não sei quantos minutos. O doutor escutava ao tempo que examinava os exames que me havia pedido. Num dado momento, parecia não ouvir mais o que eu dizia, me deixando ainda mais desesperançoso. Quando, enfim, desisti de expor os meus problemas ou acabar sendo indecente ao mandá-lo me dar qualquer coisa que melhorasse a minha situação e repetidas vezes ter dito "vê, doutor!", me calei. Afinal, ele fazia menção de que ia falar. Esperou alguns segundos e diagnosticou:
- Anemia. É preciso colocar mais ferro na dieta.
Sem mais, notei que a solução iria depender muito mais de mim do que dele. Puxa!...

domingo, 3 de junho de 2012

Hiroshima

Conheceu, então, um sujeito que quis acabar o mundo com uma assinatura. O comandante geral das forças, quase comovido, recebia a ordem nas mãos. Incrédulo. Estarrecido. Pegou o telefone que lhe dava a comunicação direta com a aeronave, assim que obteve sinal, disse, em tom profundo:
- Solte o menininho.
O piloto, que já havia relutado em pilotar, não contestou. Apenas respondeu:
- Copiado.
A azeitona preta, como se via no horizonte, caiu do avião. De longe, parecia tão leve a queda até tocar o solo e um cogumelo de fumaça subir. Bastou uma bomba. E quantas precisavam?