segunda-feira, 30 de maio de 2011

Impressões de Januário sobre as coisas da vida

Impressão 10

Januário encontrou-a.
Ela perguntou, como sempre:
- Como estás?

Januário, sem paciência para as mesmas respostas às mesmas perguntas, teve um lampejo de coragem:
- Não muito diferente desde a última vez que perguntaste.
- Estás diferente, de certeza.

E Januário viu que ela tinha razão.

sábado, 28 de maio de 2011

Simão e a lividez

"Simão e Lívia"
Voltava, então, de onde percorri a madrugada toda. Com a derrota estampada na face, com a fadiga, com reação à nada. Com a última frase a repetir: "...eu não te vi mais".
A manhã já estava diferente e a calma da aurora dava lugar ao calor angustiante. De repente, vi-me como meus personagens, minhas imagens, meus sonhos...presos ao nada. Sem passado e nem futuro.
Seguia, sem pressa até o ponto de onde comecei. E como andei! Ah, pois sim.
Ao chegar na cidade, dois minutos antes da hora do almoço, naquela mesma entrada que tu me fazia a pergunta perplexa, havia uma aglomeração. O transformador desistiu e fez o asfalto ficar mais negro ainda com as marcas das explosões de ontem pra hoje.
Eu via sem olhar. Fitava os semblantes horrorizados, os semblantes horríveis que dá-se a qualquer aglomeração, qualquer motim e revolução. Ah, desgostava de todos. É como se todos fossem culpados da minha fadiga.
Toda aquela adrenalina da madrugada anterior, naquela sensação de te ver e poder ir te ver, tudo aquilo desvanecia. Sentia uma culpa de algo que não sabia o que era, julguei-me culpado. Todos os passos que me faziam voar pela madrugada, nesta manhã, faziam arrastar-me numa lentidão infinita.
Alguém me viu e comentou algo. Ouvi meu nome soar baixo por entre todos. Com o S acentuado. Eu continuava com uma firmeza sem muita consistência, era com o olhar voltado para baixo e o cansaço a me fazer repetir a última frase...
"...não te vejo mais."

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Impressões de Januário sobre as coisas da vida

Impressão 9

Januário, diante daquela fatídica conclusão, resolveu escrever aquilo e saiu qualquer coisa assim:
Escrevo nada sobre o que sou, nada sei do que sou, não sei de nada...o caso é que sou Januário Cabeça Tronco e Membros, sem Teixeiras ou Gonçalves. Escrevo nada sobre o nada.
Enfadado, amassou o papel que escrevia e, resignado, pensou: "escrever é uma droga...vicia."
Ainda sem correr ou sem parar. Januário. Mais uma.

Impressões de Januário sobre as coisas da vida

Impressão 8

Januário percebeu, finalmente, do que é feito.
Cabeça, pescoço, tronco e membros. E pouco mais.

"É Januário...", pensou.

O cavaleiro

Derrubou tudo o que trazia à mão, por causa duma entrada atravessada de outro cavaleiro.
Derrubou, sem derrubar-se. Puxou as rédeas do cavalo, que levantou as patas dianteiras em protesto. Vinha rápido. Derrubou o que segurava.
Quando viu tudo esparramado no chão, viu também o outro cavaleiro tentar desculpar-se sem olhar para trás. Também vinha rápido.
Entretanto, o cavaleiro notou algo a mais: não caíra.
Desceu do cavalo, tratou de pegar o que derrubou e jogar para longe o que carregava, para não atrapalhar outro que passasse.
Montou outra vez e continuou o seu marchar. Para qualquer lugar que não sei...

terça-feira, 17 de maio de 2011

na casa do Mascarenhas - Quarto de dormir 2

Já não guardo lixo por baixo da cama.
Coloquei o colchão no chão e emprestei a cama a um amigo.
Tenho, agora, o lixo empilhado pelos lados, no chão.
O de cima também.

domingo, 15 de maio de 2011

Impressões de Januário sobre as coisas da vida

Impressão 7

Januário, o velho e bom Januário, irrita-se terrivelmente com ex-amores que não se vão.
Apesar de estar em uma fase mais sincera, "mais Januário", como ele gosta de dizer aos poucos amigos, não consegue ainda colocar todas as coisas desarrumadas nos seus devidos lugares.
Ele não quer assumir para ninguém, mas é assim que é.
E fica na dúvida se isso faz dele um homem menos sincero. "Menos Januário", como não gosta de dizer.

Faz tempo que a gente cultiva.

Quero ser.

Dava-te banho com água quente.
E arrancava os desenhos da tua pele com as minhas unhas
e com os nós dos dedos.

E vou para o duche a pensar em ti,
e no teu corpo desenhado,
e na tua pele ensaboada.
E nos sinais do teu pescoço.

Queria que me visses algum dia...
a mim e ao teu efeito em mim.

Próteses

Fiz-me aquilo a lembrar-me de ti.
Próteses pra potencializar os sentidos.

Pensei
em extensões para os dedos,
em saltos gigantes para passos longos,
em roupas para rolar,
em rodas para ancas.

Já não caibo em mim. Há tempos.

Tenho andado com isso na cabeça e sabe bem dizer-te.
Acho que por nos termos aproximado.

Somos quem temos.

na casa do Mascarenhas - Quarto de dormir

Guardo lixo, por baixo da cama.
Livros não lidos, tapetes emprestados, chinelos que brilham no escuro.
Caixas com roupa para o frio, caixas com roupa para o frio, caixas com roupa.
Caixas com tapetes emprestados
e lixo.
Por baixo da cama guardo lixo. E por cima também.

sábado, 7 de maio de 2011

ô pá

Escrever, para mim, é outra onda.
Tenho fases intensas e curtas,
intercaladas por grandes nadas.

Nadas necessários e precisos.

Meus nadas.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Simão e Lívia

A cidade acabava numa rua, que se tornava uma estrada. Esta era bem escura. De uma estação de energia, faiscava uns raios para o meio dela, um perigo. Tu mantinha o passo e corria pra lá, como se aquilo fosse a estrada mais segura. Era a mais escura, iluminada pelos raios de um transformador.
Eu gritei: "Lívia!", tu continuou.
Eu gritei, outra vez, mais alto: "Lívia! Volta aqui." Tu continuou.
Na terceira vez, gritei hesitante...foi quando tu parou e olhou pra trás. Tirou os fones do ouvido, olhou pra mim com estarrecimento, a uns cem metros de vantagem.
"Ainda me segue, Azevedo?", tu me perguntou.
E eu respondi com as águas nos olhos, daquela chuva que agora caía, respondi com um titubear e sem sair voz alguma. Tu virou-se pra estrada escura e continuou a correr placidamente a passos firmes.
Desta vez, não fiquei parado, mas olhei pra trás ainda. E, quando olhei pra frente novamente, praquela estrada, nem via mais algum sinal. Esperei o relampejar do transformador. Não te via mais. E entrei na estrada sem temor algum, agora. Corri, com uma força acima do normal.
Corri até amanhecer e quando vi, nem controlava mais os meus passos. A estrada, antes escura e insegura, mostrava-se linda, como numa beira destas que amanhece depois de chover, um sol preguiçoso e a vida a acordar. Eu corria e via tudo, só não te via e isso me fazia apressar o passo...

...não te vi mais.