domingo, 2 de dezembro de 2012

Enquanto olhava no espelho, as barbas postiças que vestia meio sujas, meio esbranquecidas pela poeira do palco. Assistia nos olhos que fitava um orgulho pequeno. Estava ali parado. Apenas olhando para os seus próprios olhos, sem ter o que pensar. Apenas olhando...
A noite terminava silenciosa naquela espécie de camarim montado atrás das lojas do shopping. A sua figuração havia sido qualquer coisa dentro do padrão, da qual orgulha-se pouco. Nada se diz, vai de um lado ao outro e pronto, está feita a sua atuação. Agora, deveria tirar as tais barbas que colocava no rosto. Postiças sim, pois não aguentou duas semanas com a barba real tapando o seu rosto.
De alguma forma, ter aquelas barbas postiças causou o sentimento contrário. Parecia que se as tirasse, não seria mais quem queria ser. Havia medo.
Porém, tirou-as. E o que viu foi a verdade. As barbas já não vestiam tão bem. Tinha certa razão por não esconder as faces atrás de barbas... reais ou postiças.
Com as faces expostas, acabava a proteção do anonimato. Agora, com as faces limpas e livres era quem sempre sonhou ser.
Eis que fitava. Fitava sem pensar até vir a frase que calou ainda mais o silêncio: "Eis aqui um homem verdadeiro". E o silêncio reinou como um cataclismo!
No dia seguinte, na mesma hora, a cena se repetiu. E no outro e no outro... até a peça sair de cartaz. Quando saiu, era já um homem diferente. Um novo, porém mais velho. Um homem mais sábio, então. Seguiu, a partir daí, com prudência e honestidade, sempre guardada como um cofre com segredo. Sem nenhum orgulho ou charlatanismo, era prudente e honesto por ser a sua essência. Um homem com verdade nas faces.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

domingo, 11 de novembro de 2012

Aquelas ideias

Gritou da janela:
- E da próxima vez que vieres não te esqueças das minhas K-7's do Padre Zezinho, sim?
Era sempre a mesma merda. Tive vontade de levar comigo os copos que nos deu Mamãe, mas não quis começar outra briga.
- Sim, não me esqueço. Fica bem.
Fechou a janela. Era Outono e já fazia frio.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Não lembro do teu cheiro

Queria pedir-te um favor.
Compra um lenço, esfrega-o no corpo e manda-mo pelos correios, sim?
Obrigado.

sábado, 13 de outubro de 2012

Mal posso engolir as palavras que ia dizer. Não disse. Hoje, pela manhã, recebi uma cantada... sem perceber. Vai lá que devo estar sem a sintonia para estas coisas ou tenho um total desinteresse por isso. O fato é que percebi que fui cantado umas três horas depois. A resposta da pergunta foi tão direta da forma que soou, apesar de ter tido a intenção indireta. No caso, quem quer saber o que vou fazer nesta noite? que não esteja interessado em ter a minha companhia e perguntar assim: "o que tu vai fazer hoje à noite?"?
O meu despercebimento passou ao acaso e falei com total sinceridade:
"Acho que vou dormir."
A conversa que se iniciava morria ali. Para mim, com uma naturalidade de uma conversa qualquer. Para a outra pessoa, um balde d'água fria.
Ou, talvez, tenha exagerado um pouco.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

De madrugada

Sentado nesta triste madrugada.
Vendo a escuridão desta amplidão
da qual nada me atém...
Acho que não vale mais a pena falar
e ser quem eu quis ser,
minha voz perdeu a graça
a mansidão...
Eu já havia dito.
Tudo é tão melancólico
quanto esta madrugada que entra
na minha janela...
Nem me pareço com aquela boa pessoa
que pensei que um dia fui.
Sinto falta disto.

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Ia ser assim mesmo

No fim de tudo ia ser assim mesmo,
só.
Os meus amigos que vão pelo mundo
com saudades de mim.
Aonde estou mesmo?
No fim de tudo, na solidão de meu quarto.
As doces meninas que um dia conquistei,
pelo mundo, sem saudades de mim.
Para onde fui?
Voltei para mim mesmo.
Ah... meus avós com um pé na cova
e eu sem nem ter algo para lhes confortar.
Sempre achando que as coisas mudariam...
sozinhas, por elas mesmas.
Mas, tudo continua igual.
Se não fossem as mentiras que contei,
se fosse apenas isso.
Ah... estou sozinho
e as paredes do meu quarto gritam:
"saia! saia daqui!"
Quem diria... até em casa
sinto não um estar em tranquildade
sinto uma solidão qualquer...
Um quê de insosso,
um dissabor sobre as coisas além de mim.
Eu sou, de fato, um sujeito voltado para mim mesmo:
sozinho.
Chego a duvidar da minha existência
e toda a sua magnitude de existir.
Afinal, me parece que o mundo continuaria
ainda assim.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Arquipélagos estelares

Meu deus, se houver um outro mundo
além deste aqui,
não me leve...
me escuta?
Este aqui é tão perfeito...
Se há outro céu além deste,
mais bonito que este...
menos intrigante e inalcançável,
menos aterrador e, ao tempo que, silencioso
sem mistério...
tudo revelado...
Não. Não me faça ver agora. [ou nunca]
Estou diante de todas as estrelas que posso ver.
E não quero mais nada.
Acredite em mim.
[uma vez que seja]

sábado, 14 de julho de 2012

Indisposto

Esta tua ideia me enfada...
Enfada ainda mais
saber as consequências
que o meu enfado
vai te causar.
Veja por outro lado...

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Rasguei umas páginas

Fiquei hospitalizado nos últimos dias por conta de um risoto mal feito e comprimido.
Quando voltei para casa, aproveitei a recuperação e arrumei meu quarto. Achei uns cadernos, abri-os e iam lá umas teorias incompreensíveis, outras fórmulas matemáticas e uns mapas... tinha algumas frases soltas...
Rasguei algumas páginas e colei-as na parede. Havia uma que me intrigou e reproduzo aqui:
"Tenho ideias úteis, não sei quando, diz-me a professora que...
Mas, as tenho, segundo diz-me a professora. Eu nunca achei isso. Ela disse-me, ainda hoje, que tenho ideias úteis e criativas... busquei na memória alguma... não achei. Cheguei a conclusão que devo escrevê-las."
"Tenho segredos, como todo homem os tem.
O homem que não tem segredos, não o é,
nem homem nem segredo, é apenas uma existência
sem significado.
O problema dos meus segredos
é que nunca vou contá-los enquanto vivo estiver.
E de que me vale ir à cova sem descobrirem-nos?
Não carece.
Tenho segredos, alguns infantis,
alguns juvenis
e outros imbecis,
como todo homem os tem.
E que leva ao túmulo junto dele."

segunda-feira, 18 de junho de 2012

"Meu" bem-te-vi

Sempre pousava na minha janela, um bem-te-vi. Havia um horário certo. Ele cantava daqui, outro respondia de um outro local. Passava alguns instantes pela manhã bem cedo, ia embora, e retornava para mais outros instantes no final da tarde. Não sei se era o mesmo. Para mim, era. Até comecei a sentir falta dele e do canto do outro quando eu não podia estar em casa no horário dele. Convenci, portanto, de que o bem-te-vi era meu. Afinal, pousava sempre à minha janela!
Um dia, deixei alguns pedaços de pão para enfastiar meu querido bem-te-vi. Com o tempo, passei a deixar quase todo dia. Antes de sair pela manhã, deixava os farelos de pão na beirada da janela. Quando voltava, no fim de tarde, não tinha farelos e o bem-te-vi estava lá. Cantava, esperava o outro, anônimo mas que deveria ter uma janela para ele e as mesmas cores, cantar e cantava novamente. Não tardava e ia embora. Sem se despedir nem nada. Considerava-o meu, mesmo assim.
Certo dia, veio uma andorinha e mais outra. E meu bem-te-vi não veio. No outro dia, vieram as andorinhas e mais outras andorinhas. E vieram pardais e pombos. Deixei de colocar os farelos de pães na janela. As aves eram tantas e subiam pelo telhado, invadiam a minha casa. A vizinhança já comentava e estranhava aquele tanto de aves pelas redondezas nunca antes vistas. O fato é que as tais andorinhas e os famigerados pardais não cantavam, faziam um barulho que ficava entre o histerismo e a loucura. Disputavam cada palmo do meu telhado! A rivalidade caía noite adentro. O silêncio havia se tornado um som raro em minha casa.
Passei a deixar a janela fechada. Não me interessava aquelas andorinhas, pardais e pombos. Eu queria ver o bem-te-vi.
Nunca mais vi o bem-te-vi. Nunca mais. Quando o considerei mais meu, foi quando o perdi.
Hoje, pela manhã, antes do céu clarear por um todo, escutei um bem-te-vi e outro responder. Meus ouvidos mal acreditavam no que ouviam, arrepiei-me todo. Fiquei na cama, de onde escutei o primeiro canto. Escutei o eco. Escutei de novo. Bem de perto. Não tive vontade de ir à janela. Fiquei imóvel, imaginando os seus gestos, a sua atitude juntando-se ao seu canto e ao canto do outro, anônimo e não por isso menos encantador.
Na verdade, ele nunca foi meu. Eu devia ter deixado a coisa acontecer naturalmente, sem ter que tomar-lhe como meu. Talvez, ele nem saiba minha existência. Talvez, ele nem mesmo saiba o que é existência. E é isso que o deixa ainda mais fascinante.
Canta, bem-te-vi. Canta, bem-te-vi do outro canto.
Devagarzinho embalando o meu início de manhã.
Hoje, então, fui outro.

Anêmico

Na sexta passada estive no consultório. Depois das perguntas casuais, desabafei:
- Doutor, estou toda hora cansado e não consigo fazer nada do que fazia. Nem escrever mais consigo. Aliás, escrever se tornou um sacrifício. Me sinto mal quando não escrevo, mas também me sinto mal quando escrevo. Então, vê o tamanho do meu cansaço! Nada me apetece!
Continuei esta lamúria por não sei quantos minutos. O doutor escutava ao tempo que examinava os exames que me havia pedido. Num dado momento, parecia não ouvir mais o que eu dizia, me deixando ainda mais desesperançoso. Quando, enfim, desisti de expor os meus problemas ou acabar sendo indecente ao mandá-lo me dar qualquer coisa que melhorasse a minha situação e repetidas vezes ter dito "vê, doutor!", me calei. Afinal, ele fazia menção de que ia falar. Esperou alguns segundos e diagnosticou:
- Anemia. É preciso colocar mais ferro na dieta.
Sem mais, notei que a solução iria depender muito mais de mim do que dele. Puxa!...

domingo, 3 de junho de 2012

Hiroshima

Conheceu, então, um sujeito que quis acabar o mundo com uma assinatura. O comandante geral das forças, quase comovido, recebia a ordem nas mãos. Incrédulo. Estarrecido. Pegou o telefone que lhe dava a comunicação direta com a aeronave, assim que obteve sinal, disse, em tom profundo:
- Solte o menininho.
O piloto, que já havia relutado em pilotar, não contestou. Apenas respondeu:
- Copiado.
A azeitona preta, como se via no horizonte, caiu do avião. De longe, parecia tão leve a queda até tocar o solo e um cogumelo de fumaça subir. Bastou uma bomba. E quantas precisavam?

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Antenor à esquerda

Antenor era um sujeito tenaz. Todas as suas coisas tinham certa convicção. Muitas delas, faziam algum sentido,  como a cor azul marinho da gravata, a mariscada da Tia Joana e o Wood Allen. Não discutia muito, gostava de dizer do que queria. Seus amigos sempre gostaram da sua companhia.
Tinha apenas uma convicção que causava estranheza. O Antenor tinha peculiaridade, sempre queria ficar no lado esquerdo. Sempre. Não havia um argumento produtivo, contudo...
Escrevia com a mão esquerda. No time da sala, era o ponteiro... esquerdo. Quando cresceu a sua ideologia ficou clara, esquerdista. Sempre ultrapassava pela esquerda, nesse ponto, devo confessar, seguia a norma de trânsito comum no ocidente. Porém, o mais esquisito era ele ter que enfatizar isso, sempre que iam ao cinema, ele já anunciava:
- Eu fico à esquerda!
Todos não levavam tão à sério. Talvez, se ele não falasse, já naturalmente isso aconteceria. Ele ficaria à esquerda.
Certo dia, uma grande cantora internacional visitou a cidade. Ele objetou o seu lugar para acompanhar. Joaquina, uma daquelas jovens loiras estonteantes com tez metade sueca metade russa, uma conhecida, não tão amiga assim. Conhecida, de andar de vez em quando com a mesma turma do Antenor, por ser amiga da Aninha, prima do Guto, amigo do lado esquerdo de Antenor. Joaquina não era tão questionadora. Mas, ao ver que aquela intrigante e convicta afirmação, ficou incomodada.
Comprados os assentos, devidamente do lado esquerdo. Iam lá, além de Antenor e Joaquina, o próprio Guto, a Aninha, Manuela e Otávio, mais outros que não convém lembrar-lhes os nomes. Antes de começar o show e já com as bebidas em mãos, a festa já tinha um ar de festa. Iriam ver uma apresentação internacional!
Num dado momento Joaquina reparou outra vez o Antenor se vangloriando de estar no lado esquerdo da platéia e de como era muito melhor. Intrigada, a loira voltou os olhos para o palco, o mestre de cerimônias agitava o público que enchia o pavilhão de concertos. Continuava a pensar. A pergunta lhe veio, como um dardo diretamente chegando no alvo, olhou novamente para o Antenor:
- Sabes que vamos ficar no canto direito do campo de visão da artista, não é?
Antenor não havia pensado nisso. Joaquina voltou o olhar para o palco, apontou e artista entrou. Começava o show internacional.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

A vida em 24h

Fui concebido um pouco depois da meia noite. Até às 6 da manhã, não sabia eu que estava vivo, contudo já consideravam-me um ser, mimando-me como tal. Às 7, era criança e andava, corria e caía. Às 8, nem cuidava que um dia os meus ossos poderiam quebrar com uma queda ou o queixo abrir-se dolorosamente... aprendi a chorar de dor. Logo às 9, desafiava a vida e entrava na escola. Mal podia me ver crescendo e ao meio dia, depois de aprender todas as operações matemáticas, leis químicas e físicas, todo o reino das plantas e a ler e a escrever como ninguém mais utiliza o português, tive que parar para almoçar, ao mesmo tempo em que escolhia a profissão que ia seguir na vida. Às 13 horas, junto com a faculdade, encontrei a garota por qual me apaixonaria e casaria com ela às 15. Não sem antes ter duas horas de duras provações e também prazerosas noites. Mal podia enxergar o fim de tarde, enquanto me ocupava em fazer crescer a minha família. Às 17, já tinha dois filhos e um emprego há tempos, que me macerava. Às 18, no alvorecer, a vida já não tinha a empolgação anterior de outras horas. Tinha, sim, as conquistas de meus filhos e a velhice a bater a porta na hora do jantar. Eram 19 horas, quando soube que meu pai morria, meia hora depois, morriam meu sogro e mãe, e, às 21, de tanta tristeza, partia a minha sogra. Descobri-me, às 22 horas, cansado demais para continuar o trabalho no dia posterior e pedi minha aposentadoria. Às 20, devo mencionar, vi um de meus filhos casar-se e separar, o outro já casava e me fazia avô. Num espaço de quinze minutos, me encantei com meu neto... e aceitei que já não tardava e meu dia ia chegar ao fim. Três horas depois de estar com meu neto no quintal de casa, estaria na cama. Minha esposa já não acordaria mais e dormia numa tranquilidade inabalável. Apaguei a última luz do quarto e respirei pela última vez no dia...

terça-feira, 1 de maio de 2012

Os outros

Já me disseram não ligarem para os outros.
Que se preocupar com o que os outros dizem de nós,
é senão pura perda de tempo.
Eu me preocupo com o que os dizem de mim.
Afinal, o que sou para o mundo é o que ele pensa de mim.
Eu tento, não em vão, criar uma figura minha
e somente minha?
Não.
O que faço e quero
faço e quero que os outros compreendam e digam
o mesmo que eu penso de mim mesmo.
Não é ser leviano preocupar-se com a opinião dos outros,
Vivemos preocupados uns com os outros
e conosco também.
Importe-se com que os outros dizem de ti,
se for mentira, trate de desmentir de forma categórica.
A tua imagem perante o mundo, por mais contra isso que sejas,
é a imagem que o mundo vê de ti.
Faça-te claro, então.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Poeta bom, o poeta morto

Mataram o poeta sem razão,
Ou o poeta morreu em vão?

O mundo perdeu um poeta,
Um poeta que perdeu o mundo.

Poeta bom, aquele poeta morto
que ninguém ouviu quando estava
a plenos pulmões e mais vivo.

Agora, que o cansaço é eterno
e o poeta está morto,
Ou a poesia é eterna
ou o cansaço está morto?

Só agora é que vão espalhar as suas linhas,
que nem suas cinzas, pelo mundo..
... que o perdeu e ele, nele se perdeu?

Saudades do poeta morto...

quinta-feira, 22 de março de 2012

Ateu não-praticante e romano sem fé

Eu não faço o tipo dos que têm muita fé. Então, fui a um encontro dos que não têm fé. E vi que também não tinha esta ausência soberana de fé.
Portanto, devo ser um ateu não-praticante ou um cristão sem fé.
O propósito de minha vida, não tenho certeza. E, talvez, me conforta saber que alguém, além de mim, de minha própria existência, tenha um plano providencial.
Mas, não tenho certeza da existência metafísica e de que a minha alma é mesmo uma verdade. Ou mesmo se há a física, para ter que separarmos o que podemos e o que não podemos entender...
O meu fim é a morte, de qualquer forma. E, quando morrer, não sei te convencer que nunca mais vou existir ou que continuarei existindo só que de uma outra forma. Sei te dizer, hoje, que as duas possibilidades aterram-me.
Não saberei te dizer se quando meu corpo padeceu, a minha alma saiu ou que alguém veio me buscar. Não terei contato com isso. O meu corpo será passado, museu da minha vida. A minha alma será a lembrança dos poucos que convivi. Ou o contrário, o museu da minha é o meu corpo e a lembrança dos poucos é a minha alma.
Na verdade, nunca morri ou tive uma experiência sobrenatural. Não quero nenhuma das duas.

terça-feira, 13 de março de 2012

Pegar todas

Acabo de me deparar com esta frase: "Pegar todas é fácil. Quero ver é fazer feliz uma só, a vida inteira."
Pois, digo que as duas possibilidades separadamente definidas como objetivo, para mim, são impossíveis. Não há tempo de pegar todas e muito menos de fazer apenas uma só pessoa feliz. Geralmente, porque quando deixo uma feliz, o mundo todo ao redor fica feliz. E quando consigo pegar todas, certamente, deixarei pelo menos uma pessoa feliz a vida inteira, por pura possibilidade aritmética.
Assim como soa muito carente uma pessoa depende de outra para ser feliz uma vida inteira. Da mesma forma, que é muito carente a pessoa ter que ter todas as outras pessoas...
Para mim, são objetivos, portanto, inalcançáveis.
Ademais, parece ser o objetivo de todos. Fazer alguém feliz a vida inteira e também deixar todos que lhe conhecem feliz, uma coisa por causa da outra e a outra por causa de uma. Ou nenhuma das duas, que é o mais provável que aconteça.
E uma vida inteira pode ser um dia, um mês, dois anos ou um século. Mas, também uma vida pode não ser uma vida, se eu não conseguir fazer alguém feliz nem que seja por três minutos.
Tenho 36 anos e posso considerar que vivi uma vida inteira. Já conheço uma pessoa que nem existe mais e ainda me deixa feliz ou me deixou. Até hoje, quando lembro-me dela, eu estou feliz. Ou quando estou feliz, lembro-me dela.
Sou, na verdade, a impossibilidade ou a teimosia das duas propostas.

domingo, 11 de março de 2012

Certa vez, o diabo veio e ofereceu-lhe um pacto. Ao passo que tudo o que ele respondeu ao mal:
- Não venderei minha alma.
Alguma vez depois, veio, então, o deus e ofereceu-lhe um pacto. Ao passo que tudo o que ele respondeu ao bem:
- Não venderei minha alma.
Não se sabe, decerto, o que ele queria fazer com a sua alma. Contudo, sabia-se que não a venderia. Sua alma morre com ele.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Frases de Osvaldo

Mais uma vez, aparece-me o tal salvador de vidas e todo embriagado pela altivez das suas frases e pela popularidade com a massa. Da calçada do outro lado, eis as "sábias" frases deste torpor incessante de quem fala o óbvio:
"Quando estou triste, é porque não estou feliz."
"Estou vendo com os meus olhos o que a minha vista é capaz de ver."
"Se estivesse assim, não estaria assim."

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

No Escritório - 09


No escritório, trabalhávamos somente nós os dois, eu e Eliézer.
Uma manhã, coloquei um nariz de palhaço e disse:
_ Ontem fui ao circo.
_ E então?
_ A malabarista queria que eu tirasse uma foto com um gajo vestido de Mickey.
_ E tiraste?
_Claro que não! Disse que se calhar não ficava bem uma pessoa mais alta que o Mickey posar para uma foto com ele.
_E a mulher?
_Olhou-me de cara feia e mandou-me sentar.

E voltei a guardar o nariz de palhaço.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Fogo no andar de cima

Pegou fogo no andar acima do andar onde estão os três de sempre: Tito, Maranhão e Cascavel.
O primeiro, sempre atento e vigilante, anunciou aos outros dois, que não o escutaram com tanta atenção nem razão, afinal faziam coisas muito mais importantes, julgaram ser um alarido comum dele.
Mas, o Tito tinha razão. Havia fogo no andar de cima!
De nada adiantava, o Tito continuava alarmando. Pegou uma camisa, vestiu-a e correu... para cima. Para o andar de cima. E sim! Sim! Era fogo!
Saiu descendo as escadas, em polvorosa, em desespero total. Gritando aos sete mundos presentes naquele prédio:
- É fogo!
Começou aquela movimentação das tragédias. Surgiram pessoas que nunca apareceram, descendo as escadas de Tito. Ele, perplexo, ainda não acreditava no que via e mesmo assim gritava e gritava.
- É fogo! Fogo! Chamem os bombeiros! Tem fogo no 4o. andar.
Desceu, então, Tito.
Ao passar pelo terceiro andar, viu o Cascavel com o seu bolo de papeis mal organizado, a caneta na orelha direita e os óculos no rosto. Junto dele, Maranhão com a TV seminova e enorme debaixo do braço, uma das sandálias escapando do pé e o fio enrolando e desenrolando a outra perna. Numa corrida atrapalhada, desenfreada, mais desesperada ainda a cada passo.
Os dois iam descer.
Desceram. Um lutando com papeis e o outro tropeçando no fio que liga a TV, as coisas que eram tão importantes.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Enquanto lia, outra vez, o livro no meu quarto...
O sujeito com a capa preta, outra vez, passa pela porta fechada. Pela porta. Sem abrir tampouco fechar a porta ainda fechada.
Coloca a mão branca e ossuda em cima do livro que leio. Pende-o para si. Encara-me e diz:
"Eu sou o que não existe."
Trago o livro de volta a mim e cheio de enfado, sem olhar para o sujeito atravessador de portas, digo:
"Existe sim, devolva a minha escova e da próxima vez, ao menos, bata na porta, entre como alguém que existe de verdade."
Vi, por canto de olho, sair, outra vez, sem sequer mexer na porta.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Lia um livro ontem no meu quarto.
De repente, entrou um sujeito pela porta, sem abrir ou fechar. Pela porta. Foi no banheiro e saiu. Sem abrir a porta.
Vestia preto, uma longa capa de chuva, não molhada. Não pude distinguir se era homem ou mulher.
Se alguém ver esse sujeito, faça-me o favor de lhe dizer para devolver a minha escova de dentes.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Romeu charlatão

* texto escrito por Lívia Saavedra

Meu caro Simão,

Vivi um amor de sonho. Vivi um amor proibido. Fugi com Romeu para a cidade eterna. E eu? Eternamente apaixonada pelo Romeu. Ele me fazia as loucuras dum homem apaixonado. Cortejava-me a todo instante. Romeu fazia jus ao seu nome. E eu, fugida de mim, vivia o post componendo de Shakespeare. Doce, feliz, bem amada. Mal sabia o que aquele último verão me guardava...
Saí de casa, num desses sábados de manhã de verão. Bem quente. Mas, suave. Um quente fresco, longe daquele angustiante de nossa ilha. Saí para fazer a feira. Saí com Romeu na minha cabeça e na metade direita da minha cama. Olhei-o por tantos minutos, deitado ali, tão vulnerável à minha paixão. Julguei que era com esse homem, que via com tanta contemplação, era o homem com quem eu passaria toda a minha vida. Depois de ontem, quando ele veio com todo o romance no ar e eu, toda derretida por ele...
Acontece que, no caminho da feira, estava tão ausente do presente, lembrando de ontem e de anteontem e de outros dias mais românticos ainda, que esqueci a carteira. Tinha que voltar em casa.
E lá estava Romeu. Na minha cama. Não deitado. Quer dizer, mais ou menos... a posição não importa. Lá estava Romeu, nos braços [e pernas] da Vânia. É. A Vânia, a menina brasileira do andar debaixo do nosso, e que agora, via eu, um nível abaixo do pudor que o meu e um nível acima da sexualidade. Ah... despedacei-me toda. Era o fim. O meu silêncio foi surpreendente. Não quis atrapalhar. Peguei minha carteira e umas roupas estendidas no varal da cozinha, enquanto escutava todo aquele barulho sensual vindo do quarto... do meu quarto... e do Romeu também... e, agora, da Vânia.
Peguei a primeira condução ao Fiumiccino. Estava decidida: voltaria à ilha. Mas, quando sentei-me no embarque e o telefone tocando incansavelmente, deu-me uma saudade do Romeu. Daqueles dias que, havia pouco tempo, eu lembrava. De como ele era tão sincero com aquele olhar cansado. Oh, o Romeu querido, o meu Romeu lindo... que agora, não é mais meu, mesmo que ele negue o que vi e que eu o perdoe.
Agora, todos aqueles dias inesquecíveis são muito menos inesquecíveis que este, este mesmo em que vi a Vânia, tão cordial, tão linda, agarrar o meu Romeu, como se fosse o último homem do mundo!
Naquele mesmo dia, em que estava apaixonada, depois distraída, depois traída, depois triste e depois decidida, resolvi que deveria encontrar o Osvaldo. E esqueci-me do voo que saía.
Talvez, Osvaldo salvasse a minha vida. Talvez, fosse a minha vez. Mas, quando o vi, ele falava que havia te deixado sozinho em um lugar do mundo, deixara recado e mandara e-mails... que tu não respondeu.
Quando me escutou, só o que disse foi: "o que aconteceu com o Simão?"
Desd'aquele dia, estou em Lisboa, então. Ainda não sou eu plenamente aqueloutra mulher apaixonada, muito menos por um Romeu charlatão.
Como estão as coisas aí? Espero que estejam bem melhores que aqui.
E o Osvaldo? Aonde está?

Com Carinho,
Lívia Saavedra.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Quando eu era miúdo...

... não calçava chinelas e não tinha a camisa do Botafogo. No aniversário do meu primo, na casa da minha avó, ele ganhou a camisa... do Flamengo. A 10. Do Zico. E eu via, deslumbrado, ele vesti-la. Caía tão bem a camisa 10 naquele garoto. Ainda mais a 10 do Flamengo. Do Zico! Campeão do mundo do ano anterior!
A festa corria bem até quando começar o torneio de futebol. Acho que estávamos todos os meninos de todas as ruas da cidade. Formaram-se quatro times com 18 em cada. E todos foram à loucura, quando o Bolinha - o que organizava e intermediava todas as ações daquele dia dos meninos de 6, 7 e 8 anos no máximo - lançou, uníssono, a regra: "2 gols ou 10 minutos. Quem vencer vai pra final!"
E eu, claro, o primeiro a ser escolhido pelo meu primo. Ele tinha um ano a mais que eu. E isso é uma vida, para duas crianças. Tinha-me ele como um filho, adotava-me e protegia-me de todos os outros mais velhos, amigos dele e eu até saboreava um ar orgulhoso de fazer parte da turma dos que tem 8 anos. Apesar de aparentar ter 5 ou 6, na altura dos meus últimos meses de 7 anos.
O time, confesso eu, era o melhor do torneio. E a primeira partida... era contra um outro punhado de meninões pequenos e grandes verdadeiramente menos habilidosos que nós.
Meu primo envergava aquela camisa nova, a tarde começava a terminar e o torneio tinha que começar. Levamos o primeiro gol logo no primeiro chute de um gordinho bem branco e com cabelos nos olhos... indignação total! Com o Bolinha, com o goleiro, com o gordinho. Afinal, nós éramos os melhores. Melhores em tudo.
O meu primeiro toque na bola foi quando já estava 0-1. E não foi bem um toque. A bola passou pelo pequenino espaço entre o meu pé e a grama, indo morrer no coqueiro... onde era a linha lateral imaginária. Mais um urro e quase fui engolido vivo. Meu primo, conseguiu, de alguma forma, me blindar e nos organizamos.
Perto do fim, eu domino a bola outra vez, a segunda. Desta vez, consegui deixá-la junto do meu pé. E passei rapidamente a bola ao meu primo.
Oh, aquela camisa 10 deu o maior chute de todos os tempos. Impecavelmente passando por entre as cadeiras e o goleiro que sustentavam aquela nossa derrota eminente. Empatamos.
Acabou os 10 minutos. E o Bolinha disse que daria mais dois minutos de prorrogação. Nada. 1-1. E fomos às últimas consequências, os pênaltis. Cada time escolheu seu batedor.
O primeiro foi do time deles, o gordinho que tinha feito o gol, e acho que o nosso goleiro não entendeu o que era para fazer. Logo, gol deles.
Então, lá vai meu primo. Dono da bola, dono do time, o autor do gol de empate, com a camisa mais querida do Brasil, a 10 do Zico.
Ele bateu e a bola foi parar na outra casa.
E eu, com toda aquela sinceridade inerente aos meus sete anos:
- Cara, tu é muito ruim.

Ele tinha o coração na mão

... então, encheu um balde com água e sabão e enfiou-lhe seu coração.
Tirou, colocou e tirou outra vez, assim, repetidamente.
Até que devolveu-o ao próprio peito.
Eis aí um homem com o coração limpo.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Bar dos Literários

Andava sem necessidade pela cidade. Pelo centro dela. Varava a noite alta tropical, os bares todos abertos e entro num.
E eis que me deparo com seis figuras, das quais nunca descrevi.
São seis personalidades desconhecidas verdadeiramente, contudo, mereciam algum sucesso. São literários, que todas as segundas-feiras reúnem-se na mesa 14 do Bar Zon e discutem todas as questões, físicas e metafísicas, do universo. Encontros marcados pela longa duração, vai até o taberneiro, seu Manoel, decretar que, de fato, o bar vai fechar. Marcados também pelo alto teor melancólico, pelas discussões desnecessárias e pelas lágrimas de um ou dois que revivem qualquer romance não-escrito por eles.
Eu apenas observo e não os conheço, como toda a gente desconhece. Portanto, não tenho como dar-lhes nomes, farei, pois, uma apresentação inicial.
Um é romancista contemporâneo, julgo eu, tem as calças desembainhadas, magricela e porta-voz das frases curtas. Sempre quis escrever um livro. Contudo, todas as suas estórias parecem acabar antes de chegar à segunda página.
Outro, um pouco mais escuro que os demais e com a pele mais machucada pelo sol, é um poeta popular. Detém aquela sabedoria popular, fala em quadras até num simples conversar.
Há o mais velho de todos, com uns vinte a mais em relação à média do grupo, que é, que vive há dois séculos atrás do nosso, veste roupas impecavelmente velhas e tem aquele ar romântico, ele quem dá mais melancolia às conversas. Sempre a lembrar dos tempos que eram diferentes dos atuais, apesar de parecer não ter vivido aquele tempo com tanta intensidade. Recita poemas ao léu, com os olhos voltados para o nada e com a expressão de estar vislumbrando o infinito.
O quarto literário, nunca o vi sorrir, tem um ar sério e uma barriga enorme. Cultiva um bigode que já inicia-se a ficar grisalho. É mais policial, teve algum sucesso, quando investigou o sumiço misterioso das taças do último campeão do torneio de futebol da ilha menor. Ele parece sempre saber dos bastidores de toda trama policial. Escreve muito, pouco produz.
Existe um que por pouco também me enganou. Trata-se de um ator jovem, que atua tão bem como escritor, que é, na verdade, um grande charlatão literário.
E há um, que vive na penumbra, num canto quieto e a fumar todos os cigarros do mundo. Acho que nunca ouvi a voz dele.
São os seis literários mais desconhecidos que reconheci terem talento para algo mais que as segundas-feiras no Bar Zon com vinho do Porto, um jogo de sinuca preguiçoso e o seu Manoel dizendo por vinte vezes que o bar fechou.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Ele e a camisa da Juventus

Estava ajoelhado. De costas, sem camisa. Aliás, com camisa, mas na mão. Quando notei, era a camisa da Juventus.
Trouxe as mãos para o rosto, inclusive a camisa. Não conseguia se conter. Ficava ele e a camisa da Juventus. Olhos fechados e a camisa da "Velha Senhora" abafando o som da boca.
O que se passou, eu não fui verificar. O que observei é que tinha um homem, beirando os quarenta e com a camisa da Juventus, comovido.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

No Escritório - 08


No escritório, trabalhávamos somente nós os dois, eu e Eliézer.
Uma manhã, levantei repentinamente e disse:
_ Vou fazer fotocópias.
_ Ok.
_ Adeus.
_ Adeus.

E fui fazer fotocópias.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

E-mail de Osvaldo [e estou de à São Tomé]

Quando chego em São Tomé, abro minha caixa de mensagens e lá está, assim em negrito [pois é mensagem não lida], Osvaldo de Mádraga.
Nem vejo mais os outros e vou direto à isso:

"Caro Simão,

Sei que minha repentina decisão foi nada elegante..."

Nisso, falei com a tela: - Tem razão.
Continuo:

"...mas, é que devo te confessar que não suportava mais ter que te trazer comigo."

- Mas, que filho duma...
Parágrafo seguinte:

"É que julgo que és uma pessoa tão talentosa e que não deve seguir em sombra de alguém [sic]. Sabe, não sou uma lenda, como tu andas escrevendo e dizendo para o mundo. Não reprimo, contudo, que me vejas assim. Afinal, quem é que não gosta de ser elogiado [sic]. Mas, dizia... não sou uma lenda. Não sou um salvador coisa nenhuma. Já me expliquei o que faço e já te disse também, não vou perder meu tempo tentando fazê-lo aqui.
O fato é que digo o óbvio, como até tu havia verificado em uma de nossas raras conversas. Digo o que a pessoas [sic] querem ouvir, nada do que digo é o que elas precisam ouvir. Sou desnecessário, uma bobagem sem finalidade. Porém, sou a vontade. Uma pífia palavra ou atitude já previsível a qualquer ser humano frente ao que vimos, porém o que a pessoa quer. Enfim, é isso.
Não sejas tolo e fique à sombra de mais ninguém. Soube da Lívia e sei dela mesmo que ainda há sim toda a saudade de ti. Ela não te entende. E tu não me parece com algum esforço de se fazer claro. É bom que te faça logo, antes que o tempo trate de tornar uma claridade nada triunfal.
Volta à tua ilha. Reflete um pouco. Veja bem o teu horizonte. Olha a casa que tu tens. Na verdade, Simão, tu tens um talento incrível! E há também, muitos que dizem de ti, não fazes ideia. Eu estou admirado com que tu és pelas palavras de outras pessoas e não de ti mesmo.
Fica aqui o meu agradecimento pela tua companhia. Mas, fica também, o meu conselho. E, talvez, eu realmente salve uma vida, a que mais quero - a tua.

Atenciosamente,

Osvaldo de Mádraga."

- E o idiota diz que fala o que as pessoas querem ouvir. Além de tudo, sabe nem escrever. Vai plantar batatas, Osvaldo! - resmunguei para o monitor.

[haja vista a quantidade de sic que coloco, para já enfatizar como e o que foi que eu li]