domingo, 25 de dezembro de 2011

Atônito

Pela manhã, fui tomar o café da manhã no restaurante do hotel. Quando voltei ao quarto, Osvaldo não estava, muito menos as coisas dele.
Ao lado do dinheiro das diárias, havia um bilhete:
"Prezado Simão,
Chegou a hora. Eu parto só. Vou me esconder do mundo. Quem quiser me achar, que me procure."
E ponto final. Nem uma assinatura, nem uma despedida.

sábado, 24 de dezembro de 2011

Andanças por aí...

Estamos de férias. Nada de salvar vidas. Passeávamos eu e Osvaldo sem muito intento e num calor divisível.
Quando num caminhão tinha escrito: "A tua inveja é o meu sucesso".
Prontamente, Osvaldo protestou:
- E se eu não tiver inveja?!

No bar

Cheguei num desses bares, que há em todos os lugares do mundo. Quis ficar um pouco longe de Osvaldo, quis conversar com alguém que seja humano. Ou alguém que pareça ser. Afinal, estou mudo há tanto...
O homem por detrás do balcão não tinha tanta simpatia e tudo o que consegui foi um par de resmungos e dois copos de pinga.
O que mais eu queria?

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

No Escritório - 07

No escritório, trabalhávamos somente nós os dois, eu e Eliézer.
Uma manhã, disse:
_ Hoje dancei em frente a um espelho.
_ Ok.
_ Da cintura pra baixo.
_ Happy feet!

E sapateei por baixo da mesa do escritório.

No Escritório - 06

No escritório, trabalhávamos somente nós os dois, eu e Eliézer.
Uma manhã, Eliézer começou:
_Eu vou ser franco. Quando eu morrer eu quero estar morto. Apenas isso.
_Eliézer, isso escrito na lápide ou no perfil do Facebook ficaria sensacional.

Eliézer não pareceu achar piada.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Para todas as pessoas que conheço

Outro dia, sentei em frente ao computador e quis escrever sobre alguém especial.
Não consegui. Não consigo pensar em alguém sem pensar em outro. Uma pessoa se liga à uma história, que leva a lembrança de mais uma pessoa.
Todas as pessoas que conheci, até hoje, me impressionam.
Talentos inatos, que vêm apenas com cada qual delas. Tenho a lembrança de cada uma. Cada uma me impressiona.
Conheci pessoas que conseguiram ver algo de feliz até no momento mais triste.
Soube que magoei outras e ainda assim, elas mantiveram um pacto comigo. Apesar de não fazer mais nenhum sentido. E, sem eu saber, trabalharam para que eu continuasse íntegro.
Houve dias que algumas pessoas testaram o meu limite. E não sei se, de fato, fiz o que elas queriam. Mas, apenas o fato de colocarem no meu limite, eu as estimo.
Todas elas procuram fazer bem, do jeito que elas entendem. Às vezes, me atrapalha. Às vezes, me ajuda. Em todas elas, fazem parte da minha vida.
São seres humanos, como eu. São todos uma ideia de perfeição, tão perfeitos... até nos seus defeitos.
São elas que me fazem desejar viver ainda mais.
Obrigado por existir.

Ano novo, ano que nunca existiu.

Tive um dia, duas semanas e três meses.
Um ano sem contagem do tempo, dos dias, das horas.
Quando chegar o último dia do ano, quando terminar o dia, virá mais um.
Um, outro, como todos os outros que passou: Um outro dia diferente do anterior.
Um novo dia diferente de todos: haverá dia e haverá noite.
Que ilusão a minha, achar que amanhã serei outro apenas por causa de um ano que muda o meu calendário de cabeceira.
Quando terminar esse ano, prometo não contar mais os anos que passo. Assim, não tenho esse cansaço, essa melancolia de ficar lembrando de tudo.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

As conversas com Osvaldo

Eu não sei quantos locais já fui, sei que faz tempo que estou sem ser onde quero...
Acontece que estou com Osvaldo, o salvador de vidas. E isso justifica toda a minha ausência.
Estávamos em algum lugar perto da Ásia.
Noite já alta.
Osvaldo, salvador que é, assistia mais uma enfermidade da vila. Não discursava há tempos. Apenas atendia e nada dizia. Eu não conseguia nem dialogar com ele, apenas frases triviais e rotineiras. Quando acabou de salvar mais uma vida, foi ao pátio e fui junto, carregando a sua maletinha [que nunca abri].
Parou. Olhou para o céu. Com mais estrelas do que antes. Com mais estrelas do que nunca.
- É lindo! - disse.
Concordei com um menear.
- É lindo! É incrível!... - repetia.
Voltei os olhos para o céu e fiquei pasmo. Estava o céu de sempre... intocável. Incrivelmente negro e banhado, eram tantos pontos azuis e brancos...
Houve mais um momento de silêncio. Desta vez, interrompido mais cedo que os últimos dez dias, Osvaldo falou:
- Estou perplexo. O lugar mais bonito do mundo é o único que nunca vou visitar.
E apontou para o céu, como se fosse um destino provável e ao mesmo tempo improvável.
Eu não compreendi. Logicamente, calei-me, porque quando o salvador fala, eu nada contesto.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

No Escritório - 05

No escritório, trabalhávamos somente nós os dois, eu e Eliézer.
Uma manhã, cantei baixinho:
_De tanto levá, frechada do teu oiá...
_Eu já ouvi essa música, disse Eliézer.
_É possível. Grande canção do Adoniran Barbosa.
_Não sei quem é.
_Imortalizada na voz da Elis.
_Não sei quem é.

Já sei qual vai ser a prenda de Natal de Eliézer.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

No Escritório - 04

No escritório, trabalhávamos somente nós os dois, eu e Eliézer.
Uma manhã, sem muito o que fazer, perguntei:
_E se contratássemos alguém para vir trabalhar connosco?
_Alguém quem?
_Alguém que nos pudesse trazer notícias do mundo lá de fora...
_Um rádio?
_Um contínuo!
_Ó sim, um contínuo.

Eliézer estúpido.

No Escritório - 03

No escritório, trabalhávamos somente nós os dois, eu e Eliézer.
Uma manhã, ao chegar, vejo Eliézer a fazer-se de malabarista:
_Mas o que é isso?
_O quê?
_Este escritório é um circo?
_Agora é. O palhaço acaba de chegar.

Sentei-me.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

No Escritório - 02

No escritório, trabalhávamos somente nós os dois, eu e Eliézer.
Uma manhã, cheio de dor de cabeça, perguntei:
_Tens aspirina?
_Não. Nunca precisei.
_E o que fazes quando tens dor de cabeça?
_Tento esquecê-la. Funciona sempre.

Funcionou.

No Escritório

No escritório, trabalhávamos somente nós os dois, eu e Eliézer.
Uma manhã, cheguei 15 minutos atrasado:
_E então?
_E então o quê? respondi.
_Isto são horas?
_Tive um problema.

Não era a resposta que Eliézer esperava.
_Tudo bem.
Não me interessava nada pelo que Eliézer esperava.
_Ótimo.

sábado, 26 de novembro de 2011

Pelo mundo...

Fomos à Dacar, Mauritânia e depois, Lisboa. Estamos em um lugar, que não sei exatamente o que é. Mas, pelo jeito, ainda é Portugal. Acho que vou à procura do Mascarenhas, é tempo de fazermos as pazes e esquecer as mágoas.
Já não suporto a presença do salvador de vidas, Osvaldo. Não que tenha algo contra ele, não o suporto mais. Há uma certa arrogância, uma atitude superior ao mundo que vivo.
Ele continua a salvar vidas, e eu? - que te importa? Não estou aqui para contar o que faço. Estou aqui para contar outras coisas ou coisa nenhuma... e isso remete-me os dizeres do Osvaldo, que, pouco a pouco, vai modificando o meu modo, sem eu nem pestanejar.
Certo dia, num desses lugares que nunca aprendemos o nome, muito menos o idioma, ele falou:
"Qualquer coisa é coisa nenhuma."
Eu não entendi. Contudo, todos à volta pareciam admirados... e há algo na voz dele, algo nos seus gestos, algo que nos faz apenas ouvir. Sem ter o que contestar. Ou arguir. Eu não compreendo, de fato.
O fato é que... ele anda pelos cantos, fala alto e utiliza bem as mãos ao falar. Todos escutam e ele assim, salva as vidas, no meio dos discursos. Tem sempre algo naquela maletinha, sempre uma pílula ou mesmo qualquer outra coisa. Eu fico me questionando onde ele arruma estas coisas, não me lembro de tê-lo visto fazer alguma lista ou comprar qualquer das coisas que poderiam faltar naquela maletinha preta.
Ele salva vidas como quem dá "bom dia" aos vizinhos. Faz isso com tanta naturalidade, que chega a causar-me uma inveja. E já não o suporto mais, não o entendo mais... apenas escuto. E me pergunto:
"Como ele consegue?"

domingo, 13 de novembro de 2011

O início da viagem

A caminho de Dacar, avião no horário e vamos os dois.
E Osvaldo, o salvador de vidas, tem um ar sério. Pergunto o que há. E ele me diz:
- É que, em aviões, tenho pavores.
Eu digo que é seguro e que há mais acidentes de carro do que de aviões. Ele, o salvador de vidas, responde austeramente:
- A diferença, meu caro Simão - e aí faz-se uma pausa, engole em seco a decolagem e volta a falar - a diferença, meu caro Simão, é que quando há acidentes de avião, não há quem sobreviva.
Apesar de achá-lo trágico, concordei. Ele fala como um sábio.

Estou partindo...

Adeus, Lívia. Adeus, menina do Cabo Verde. Adeus, poeta morto. Adeus, Mascarenhas. Adeus, Cascavel e Tito e Maranhão.
Arrumei minhas malas. Vou partir mais uma vez. Agora, vou com Osvaldo, o salvador de vidas.
Despeço-me sem vê-los. Não sei quando volto. Sei que um dia eu volto. Vou tomar um rumo, saio da ilha, outra vez.
Estou partindo...

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Osvaldo, o salvador de vidas

Outro dia, conto mais da história de Osvaldo, o salvador de vidas. O que queria elucidar é que ele está na minha rua, a esta hora da madrugada, a declamar frases de efeito. Está declamando com ar de sábio, contudo é um sarcasmo característico deste rapaz, um salvador e, ao mesmo tempo, um louco. Lá vai umas frases dele e transformei em prosa, ele deve estar bêbado:

Meu amor, és tudo para mim. Sem ti, não seria diferente.
Amo todas as coisas das quais amo, só não gosto das que não gosto.
Contigo, tudo é inesquecível, desde que eu me lembro.
Sempre que lembro, é inesquecível.
Ainda há em mim um lampejo qualquer, que se esconde na minha latência.
Eu sou hoje. Não sou ontem nem amanhã.
Porque se fosse ontem, era eu e não sou mais. Ontem está morto.
Porque se fosse amanhã, serei eu e ainda não o sou. Amanhã, nem sei se vivo estou.
Ei! Para quieto! Você você você...

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Conheci uma menina do Cabo Verde

Andando pela minha costa - costa da minha ilha - conheci uma menina. Bem escura, o que já me deixou impressionado. Mas, era uma negra diferente das que há na minha ilha. Esta, olhou para mim.
Um trocar de palavras e conheci-a. Conheci a menina do Cabo Verde...
Mora numa ilha, assim como eu. E sente uma vontade de sair de lá. Quando sai, quer voltar. Assim como eu. E já interessei-me todo por ela. A ilha, tão pequena como a minha, é incrustada na sua vida. É tão imensa, pois não há saída, sempre quer voltar para lá. Sempre quer sair de lá.
Ela diz que vem da Praia, capital. E isso já é sensacional. Conta umas ideias, não entendi bem.
Ainda assim, fiquei mais admirado. Não só com a negridão, agora com as ideias dela.
Ela conta que na Praia, tudo é mais belo. Contudo, ela me disse que nunca havia conhecido alguém tão belo.
Então, meus amigos, eu dei-me que estou apaixonado pela menina do Cabo Verde, que mora na Praia, é negra, tem ideias que não entendo e acha-me belo.
Tão assim, que esqueci de perguntar o nome dela e o que ela realmente sente.

Versos de um poeta morto

Segue aquele barquinho, entra no mar,
Vai em frente, sem nem me olhar.
Aqui, já não há mundo. Não, não.
Eu não mereço o teu perdão.
Pega-o, teu barquinho, esquece-te de mim.
Ser um perfeito canalha, foi o que fiz.
Não me olhe assim, que tenho lágrimas no meu rosto.
Quanto mágoa fiz, quanto desgosto.
Oh.

Adeus,

Poeta morto.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Perseguiram-me

Depois do almoço, andei pela calçada daquela rua deserta. Uma que tem muita sombra, o sol castigava demais aquela uma hora da tarde. Caminhava naquele passo de quem anda com a barriga saciada, uma barriga de rei!
Quando menos noto, notei. Um folhear. Não, não. Algo movia-se comigo. Olhei para trás... nada. A mesma calçada com a sombra aliviante. Voltei ao meu passo, já desconfiado.
Outra vez, ouvi mais perto de mim. Umas passadas ligeiras, junto com o vento. Parei. Olhei em volta... nada.
Andei mais rápido e cheguei em casa. Rapidamente. Quando dentro de casa, espiei pela janela e, claro, com a porta já trancada.
Ninguém.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Salto alto

Simão:
- No andar de cima, um "toc toc".
Um andar feminino. Fico aqui embaixo, olhando o teto, chão do outro. Da outra. O salto alto, andando pra cá e pra lá. Uma mulher...
Deve ter as pernas torneadas, brancas, bem grossas, o corpo bem delineado num vestido preto confortável, naquele aperto sem apelo, naquela frouxidão sem folga. O corpo todo lindamente feminino; aquela cintura fina, os cabelos lisos, negros, a boca com os lábios meio carnudos meio finos.
Ah... e o perfume, ocupando todo apertando... de cima, claro, porque o meu, fede a suor de macho, com as minhas camisas penduradas pelo quarto e a louça na pia que teima em não ser limpa.
Deve ir à uma festa, enquanto se arruma...
Eu, no andar de baixo, debaixo daquele "toc toc" sensual de cima. Aonde esta moça vai? Deve estar linda.
Mascarenhas:
- É uma menina com as roupas da mãe.
Simão:
- Murchei.
Mascarenhas ri:
- Escreve isso! Escreve.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

O futuro

Outro dia, perguntaram-me quando me casaria e quantos filhos queria. Não consegui responder nenhuma.
À primeira vista, parece depender muito mais de mim do que qualquer outra coisa. Mas, pareço esperar - como me dizem que pareço esperar - a minha favorita chegar...
Não chego a concordar, nem a discordar completamente. Chegado agora, este dia, não consigo ver-me um marido ou um pai de família. Sequer ao menos pareço almejar.
De ver uma ou duas crianças gritando no quintal ou uma mulher com quem envelheço junto. Compartilhando cada conquista e lamentando cada derrota. Não vejo.
De repente, vejo-me sem resposta direta, nem sendo uma daquelas utópicas. Uma daquelas que me fazem contar o que não acontece e tem-se a sensação de que, cedo ou trade, acontecerá. Não, não. Neste momento da minha vida, este sonho, este fim, esta vontade indomável dos homens de minha idade, não aparece em mim da forma que aparecia quando tinha vinte e poucos anos...
Não, não. Não agora.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Vi Lívia

Estava num café. O mesmo que íamos. Não consegui continuar o meu caminho naturalmente. Mal podia ser visto. Eu fiquei à sombra da árvore, do outro lado da rua.
Ali estava a Lívia. Não sei o que me deu, desta vez. Não fui atrás de conversar com ela. Pelo contrário, fiquei parado. Petrificado.
Enquanto ela colocava açúcar naquela xícara, com o olhar voltado para ela, sem nenhuma pretensão de voltar qualquer tipo de olhar.
Os cabelos presos daquela forma que sempre me desnorteou.
Não, fiquei apenas para ver. Para olhar.
"Se eu for lá, só vou me lembrar do que sou hoje, prefiro pensar nela da forma que sempre gostei. Hoje, sou apenas um homem com saudades dela, quando em outros tempos, fui o homem ao lado da mulher mais encantadora!"
E minha tarde acabou sem café. Pelo menos, vi Lívia, a quem tinha tantas saudades...

sábado, 17 de setembro de 2011

Eu não tenho talento

Eu não tenho talento, isto que tu vê em mim é apenas o que tu vê em mim. Aplauda, pois a minha carência é única. Todo o mundo parece ter. Ter este tal de talento. Esse destaque em qualquer coisa que faz. Eu?
Não, não tenho. A atual conjuntura dos parâmetros ocidentais e da excelência do banal, do padronizado, deste ter que fazer o que sempre se fez... eu não tenho.
Fujo do padrão. Fecho-me em uma filosofia vã e sem nexo. A minha visão do mundo é totalmente o contrário de tudo, e ainda quando vejo alguém que compartilha do meu mesmo sentimento, não me identifico. E finjo não ser bem parecido com este alguém.
Mas, na verdade, dizia que não tenho talento. Acabo de receber um e-mail com todas as correções que devo fazer, com a nota padrão que devo receber pelo que fiz. Eu verifico que todo o trabalho que tive, nada tem a acrescentar. Ainda que tenha tido tanto tempo nele, tanta energia, tanta vontade em fazê-lo. Um sujeito lê em dois dias e diz-me tudo em uma nota, em um comentário polido e detalhista. Sem pouca razão, cheio de coisas minúsculas [das quais, nem havia reparado, quando julguei ter feito uma obra-prima], ignorando todo o meu contentamento quando fiz. É que devo transparecer não querer, segundo ele me conta. Vem e me conta em 15 linhas, tudo o que mereço da atenção do mundo. Eu o traduzo: não tenho talento.

Convite

Um bilhete deixado na porta da geladeira da casa dos 3 [de sempre]:
"Caros Maranhão e Cascável, convido-vos para um jantar neste restaurante, eu queria muito que vocês conhecessem duas pessoas importantes na minha vida."

Mandado o mesmo texto para o celular de ambos. Os dois, confirmaram. Meio desconfiados. Apesar de falar demais, o Tito nunca havia apresentado qualquer amigo.
Chegaram no local combinado. Estava o Tito à mesa para 4 pessoas, só. Depois das devidas saudações, Maranhão pergunta:
- Estão chegando?
Tito responde:
- Acabaram de chegar.
Cascavel:
- Cadê?
Tito:
- Estão na minha frente, procurando a si mesmos.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Oh, Lívia

Quando saí, meu time perdia por 1-0, fora de casa.
E, por mais uma teimosia insensata [há quem defenda que os teimosos têm razão], fui te procurar.
Não me venço. Sempre a querer.
Na tua casa, não estava.
Na tua rua, não estava.
No teu bairro, que agora é perto de onde moro. Perto da praia também.
Mas, tu não estava.
Fui, então, nos lugares que tu costumava ir. Não estava.
Retornei, a partida terminada, 2-1, um gol antológico!
Concluí que não devia ter saído daqui. Acho que perdi a melhor parte.

sábado, 3 de setembro de 2011

Voltei

Veja que coisa: quando viajava, sentia falta de casa.
Agora, que em casa estou, não me sinto verdadeiramente em casa.
Que falta faz o tempo que fiquei fora. Sem ter que obedecer a uma rotina mesquinha e fria. Falta da língua estrangeira, dos costumes nada a ver das outras terras com a nossa.
Apesar desta ilha ser tão aconchegante, tenho, por uma incrível ironia da vida, vontade de ir embora outra vez. Os mesmos amigos e as mesmas novidades. Nem parecem ter sentido a minha ausência, o que não parece ser também muita verdade.
Pode ser que seja este clima tropical. Essa... esse... calor estúpido! E que me fazia tanta falta quando estive no alto daquela montanha africana.
Talvez, por causa do som das palmeiras balançando com o vento ou desta praia interminável e pequena, toda uma nação! Mas, que me matava de orgulho quando estive na Índia, numa confusão de pessoas e carros e bois... qual barulho! Meu Deus!
Ou, talvez, porque não me prendo mais em lugar algum. Mesmo ficando bastante tempo a olhar pela janela o mundo passar, em todos os locais que fui.
Voltei, sem vontade de ficar, e sim,com a ânsia de simplesmente voltar. Não pertenço mais a este lugar... acho que vou embora de novo.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Impressões de Januário sobre as coisas da vida

A última

Segue a marcha fúnebre. Uma dezena a acompanhar. Lento e sem parar. Justamente o contrário das duas vidas dele!
Um silêncio aterrador. Um mistério insolúvel.
Um papel molhado no bolso da calça com letras borradas e ilegíveis. Eis a última impressão.

Januário, descansa, que tua vida ainda vale uma homenagem.

Januário
[?-2011]

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Num dia nublado

Um dia foi todo nublado e tudo estava cinza, E o céu já reiniciava a ficar limpo, como é de costume na cidade. Chove...chove bem pela manhã, abre no fim da tarde.

Preguiçosamente, caminhava pela avenida que descia à praia, uma daquelas três que desce à Beira Mar.

Surpreendentemente, ia no meio da via e não havia trânsito.

Parecia andar sem muita consistência, até ver a menina com que nunca casei mesmo. Queria-a tanto, mas não deixei nunca esse desejo ir além de um segredo meu. Afinal, era linda demais pro meu estilo, um pouco evasivo, um pouco opaco.

Na época, tinha 12 anos. Hoje, já tenho bem mais. E mesmo assim, hesitei em ir falar com ela. Só que nossos olhares encontraram-se, naquela posição em que é impossível não cumprimentar.

Ah, ela continua com um sorriso estarrecedor. Morena, com ar africano meio europeu, divertida no andar, uns braço bem desenhados e a cintura mais bem feita já vista. Nariz afilado, a completar com os olhos em simetria e bem femininos...um leve puxado para os cantos.

Sentamos, bem no meio da ladeira. Como se houvesse movimento algum. Isso que me intrigou verdadeiramente.

Falamos ao mesmo tempo: "senta aqui". E sentávamos, no modo automático. Começamos a contar a nossa vida e ríamos como se estivéssemos a tapear o mundo.

Tapeávamos, porque saímos a enganar a todos...todos pensavam que nós nos deixamos no passado, quando na verdade, fizemos esse amor secreto tornar-se algo maior do que o mundo.

Ora, ora. A conversa ia demorando, tínhamos que nos despedir. E uma súbita melancolia foi naqueles dois beijos de cada lado do rosto...

No fim de tudo, quem nós tapeávamos era a nós mesmos. Devíamos ter feito este amor juvenil, algum dia, tornar-se realidade. E rimos de modo que não tenhamos que lamentar isso.

As saudades de trazer tudo o que não vivemos e ter que imaginar como seríamos o que nunca fomos...

Eu abracei-a mais forte e ela também. De repente, nada aconteceu.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Vou embora da Índia, vou pra minha ilha

Comprei já. Tenho em mãos, a minha passagem de avião. Aqui, na Índia, confundi-me todo. São tantas coisas de tudo. Carros, vacas, homens, deuses, fome, doenças. A Índia é uma caricatura do mundo.
Pois, parado, ao telefone, em frente à televisão, comprei minha passagem de à minha ilha querida. Vou arrumar minhas malas e terminar esta jornada, sem ter concluído nada. É melhor voltar.
Bom que descanso mais um pouco na minha casa. Revalorizo as coisas que deixei...
...que saudades da minha ilha querida!

quarta-feira, 20 de julho de 2011

No mundo dos deuses

Eu estou mareado. É verão na Índia!

Eu não quero a vida eterna. A vida dentro de um reino é de me dar arrepios. Aliás, um rei é sempre um tirano. É preciso um corpo diretivo pra que ele não caia na armadilha de suas próprias virtudes, como todo poder que há, cega...
Se tiver que reviver todo o meu passado, não quero. Gosto da vida assim. Com um fim, da mesma forma do início, que não sei quando é.
Ah. Não quero ter que prestar contas do que fiz neste mundo ou ser julgado por isso, depois de vivo. Quando eu estiver morto, quero estar morto.
Acredito que não faço parte de um plano, pois se um dia descubro que faço, farei algo pra desfazê-lo. A minha natureza é teimosa.
Devo estar cego ou o mar deixou-me enjoado, é isso que digo...
Quero estar vivo enquanto estou.
Quero poder amar todos, mas sempre tenho quem não gosto também. Nada meu dura pra sempre, nem minha vida.
Já perdoei alguns que, de alguma forma, me fizeram algum mal. Teve outros que deixei de falar, acreditei não valer a pena.
Teve outras situações que o mal fui eu e nem pedi desculpas. Em outras, pensei estar sendo bom, quando fui justamente o contrário.
Não quero confessar tudo que fiz errado e nem quem acho ter magoado.
Eu, vendo esse mar de gente, começo a concluir que nunca vou explicar o sentido da vida dela toda. E isso não me incomoda mais.
A vida não se explica...é vivida.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Afinal, como é?

Os 3 de sempre não estão todos na sala. Cascavel à mesa, com um notebook, não faz mais as contas no papel. Esquece até como é a sua letra. Maranhão na televisão, assistindo, meio dormindo meio acordando, o Tour de France. É férias! Dias de verão! Dias sem ter o que fazer.
Tito chegou, direto pra cozinha. Uma animação traduzida nos barulhinhos que fazia.
- Então, Maranhão, quando é que eu sei que ela me ama? - pergunta, como quem não quer ouvir uma resposta.
O silêncio impera. Afinal, A HTC Columbia embala o pelotão numa chegada frenética, ainda faltam 8km pro fim e todos esticam o pescoço! E o Maranhão é um surdo!
- Cascavel? - vira-se pro outro colega.
- Olha...eu nunca soube verdadeiramente o que é isso. Essa de dizer que amo fulana ou sicrana. Não me encontro com resposta. Mas, acho que é...quando ela te deixa levar pra...
- O quê?!
- Quando ela quer sexo! - exclama o Maranhão, do fundo do seu silêncio. Ele não consegue tirar os olhos da tela, Renshaw já está na frente, embalando o Cavendish. Os metros finais!
- Ou, talvez, - tenta continuar o Cascavel vendo a reação perplexa do Tito - é quando ela começa a reclamar das coisas que antes ela adorava...
- Sabe, amigos, hoje - Tito toma um ar, nunca antes fora visto com tanta seriedade no semblante - Hoje, aconteceu uma coisa...
Maranhão e Cascavel já olhavam-no atentamente, ainda que o locutor se animasse com a chegada do Cavendish.
- Uma coisa, que não consigo explicar, algo que vai além das coisas racionais e previsíveis. Comprei um buquê de rosas bem roxas pra esta mulher. Depois, claro, de ter recebido, surpreendentemente, mais cedo, uma rosa branca. Não sabia que mulheres davam rosas aos homens. Meus amigos, a questão é que quando ela recebeu esse buquê, ela me olhou de um jeito que, pra mim, foi inédito. Mas, não consigo explicar. Sei que é algo bom. Muito bom! E ainda reina em mim aquele olhar...
Cavendish na entrevista: "Estou muito feliz com esta vitória".
Como o Tito, o Cascavel e o Maranhão, não sei ao certo quando é que isso acontece. Mas, há momentos que são difíceis de esquecer. É complicado explicar até que eu sinto, imagine saber o que ela sente. Acho que não é preciso um título pra isso...ainda. Sei de um adjetivo: gostoso.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

A viagem começou

Quando vou ver, eu não sei. Sei quais são as respostas que vou ouvir e coisas assim. A viagem começou. Mal me coloco na proa e o sol já começa a buscar o ocidente, o lado contrário de onde vou. Repouso um pouco o pensamento e deixo a divagar nas coisas que deixei pra trás. Na minha sacola, tenho apenas o necessário e, agora, sobra-me pouco pra viver [assim como pra morrer, afinal, a vida é ligeira].
Quando pergunto quem foi que te enviou, virás com a resposta que nem quero mais ouvir. Prefiro pensar que nos encontramos sem ter razão alguma. Prefiro a ideia de que, quando te vi, me interessei.
Quando lembro da magnificência que vi mais cedo, aquele alaranjado espetacular pintando todo céu de azul e, do lado oposto, a escuridão final, protegida pela lua toda cheia, eu gosto de pensar que o cenário fez-se assim...aleatoriamente. De uma forma que nunca mais verei e nunca antes havia sido vista. A ideia de ter contemplado algo especial por simplesmente estar vivo [e acordado].
Hoje, o meu dia, a minha ideia.

O teu silêncio

Agora, que o dia raia e nem me vejo tão leve,
Olho parvamente a cidade acordar...
...como se fosse a razão de todo o meu viver.
Trinta e seis anos e é a primeira vez fora da ilha.
Em outra ilha, à caminho de outro continente:
Vou à Índia, encontrar-me com todos os deuses.

Já nem sinto o que sentia.
Ou esqueço que sinto...

Vou pelo mar, não tolero mais o ar.

É no mar que sinto-me próximo do meu mundo,
da minha ilha querida, o meu oásis particular.
- Ainda que esteja a cada dia mais distante.

Por ora, não tenho pressa em voltar.
Tenho que entender um pouco de tudo.

Hoje, já carrego mais um fardo, mais uma vitória,
mais um ano, mais uma vida.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

De que me vale amar por uma vida toda, sem ao menos nunca odiar alguém?
Pra ver que, de fato, o amor é o melhor caminho.
Caminho que leva-nos aonde?
De que me vale saber agora?
De que me valerá os anos que vem?
Venham! Todos os anos!
Pra que eu acerte e erre.
Ame e odeie. Diga e desdiga.
Pra que eu viva e saiba o que é viver!

terça-feira, 28 de junho de 2011

quarta-feira, 22 de junho de 2011

O perdão e a loucura

Ao amigo Mascarenhas,

Saí da ilha, fiquei uns tempos no Senegal. Procurando-a. A minha ilha querida de toda a vida. Quando achei, tudo que tive foi uma mensagem: "Viva, Simão! Viva!". Percebi o quanto incomoda esta idolatria.
Precisava, então, sair do Senegal, não voltar à ilha querida e deixar São Tomé no passado.
Perambulei. Passei pelos dois desertos deste grande continente até chegar numa montanha enorme, onde parece ser mais frio que Londres, a qual chamam-na de Lesoto. Nunca havia escutado falar deste país. Saí de lá, o frio não me apetece. Fui um pouco mais ao sul...
Serpenteei as mais perigosas trilhas e deparei-me com um enorme rinoceronte. Não fazes ideia da magnitude desta besta.
Visitei o cabo. O lugar dos nossos herois. O lugar onde fui às lágrimas. Aquele lugar que tanto ceifou vidas sedentas por descobertas em nome del rei, em nome de Portugal, e, acima de tudo, em nome da humanidade!
Desisti do continente, voltei à ilha. Mas, uma nova ilha, Madagascar. Não entendo muito das coisas que são belas e nem sei se há um critério para estratificá-las, mas é decerto o lugar mais belo da terra.
Vem chegando a minha data, o meu novo ano chega. Vou a 36 e sinto-me ir pra além mais. Não sei quando envelheci e se, de fato, estou velho. Só não me sinto mais naquela juventude aventureira. Mesmo que esteja a andar por aí.
Acho que paro nesta ilha por uns dias. Tenho a melhor vista do mundo quando olho no horizonte! Estou tentando seguir à risca a mensagem de quem sempre amei. Nada acontece no novo sem eu perceber direito.
Estou entre o perdão e a loucura. Perdoo a quem me magoou profundamente, não havia maldade naquilo. Perdoo, pois já não há rancor, que vale nada.
É só a loucura que não me deixa acomodar, afinal, o que sou pra ela nesse instante? O que ela é pra mim? Aquela ilha deixava-me parvamente louco, com certa lucidez lunática. Fui...
Vou viver, Mascarenhas, acho que está na hora d'algo acontecer na minha vida. Começo a repensar aquela minha teoria de que na vida nada acontece. E não sou mais aquela perda de tempo. Tenho vontade de crescer, produzir e aprender. Posso até estar velho, mas sou tudo no que sou, nada além.

Um abraço do seu amigo,
Simão de Azevedo.

terça-feira, 7 de junho de 2011

A casa dos três

Vivem na mesma casa, Tito, Maranhão e Cascavel. Todos velhotes e bem cansados. A casa fica numa cidade não muito grande, mas nem tão pequena. Um pouco rural, muito mais urbana. A cidade é calma e todos não se conhecem ou conhecem pouco demais de cada um.
Tito fala demais. Era casado, depois de 23 anos, a mulher o deixou. Sempre falou que o Tito fala demais. Faz de menos. Ela ficou com o carteiro. Advogou, nos áureos tempos da justiça.
Atualmente, tudo o que Tito fala, ninguém escuta. Ele fala até o Maranhão enfadar. Fala sem parar, sempre caminhando de um lado para o outro da casa. De tanto falar, esquece que tem louça pra lavar e a pia está abarrotada.
Maranhão passa o dia na televisão. Escuta tudo que o Tito fala. Bem, escuta sem ouvir, se é que tu entende a mim. Escuta até dormir. Assiste a televisão, sem ver realmente. É viúvo e muito taciturno. Foi médico e não sente falta daquele tempo. Quando fala, é pra calar o Tito com uma frase impactante e com pretensão de ser da maior sabedoria.
Cascavel faz contas no papel e na calculadora. Está sempre preocupado com o orçamento da casa. Não casou. Teve namoradas a fio, depois, enjoou. Não sei bem qual foi a profissão dele. Hoje, ele é um aposentado nato.
Sente falta do Januário. Está na mesma sala dos outros dois, só que nunca parece estar realmente presente. Ou parece estar a par de tudo, com aquele ar superior dos que nada dizem.
Os três. Os três de sempre.

domingo, 5 de junho de 2011

Impressões de Januário sobre as coisas da vida

Impressão 11

Januário viu e ali ficou. Depois de um longo silêncio e ela já ter ido:

- É que eu sorrio mais, hoje.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Beijo

Dou-te um beijo inesperado.
- Vais embora?
- Não. É um beijo "porque sim".

Lívia Pires

Para Simão de Azevedo

Meu querido e estimado Simão,

Sou eu, Lívia. Escrevo de um lugar criado pra ficar só com o mundo. Vejo toda a terra até onde os olhos podem enxergar. É uma vista exuberante. Muito verde até o fim.
Estou a pensar. Pensar sem parar. Ando a pensar em nós dois e a que ponto chegamos. Acho que me acostumei tanto em te ter, que posso te ter no momento que eu quiser. Só que agora, ando confusa. E acho que estou a te perder, de alguma forma. Devo estar pensando demais e fazendo de menos ou vice-versa.
Passo as tardes jogando pedrinhas daqui do alto, imaginando qualquer coisa.
Simão, eu te amo! Penso em ti a todo momento...ou quase todo.
Eu te amo, mas não te quero mais. E me perdoe a força desta frase tão crua. Falo com o mais apertar no meu coração. É o que sinto e isso não me alivia. Estou triste, assim como tu.
Tenho saudades de ti, de nós...não quero mais. Gosto das nossas histórias, da tua risada, do teu jeito sério de falar das coisas amenas e da forma amena de falar das coisas sérias.
Sempre acho que tu quer dizer algo quando escreve, apesar de tu repetir enfaticamente que é "uma perda de tempo". Meu filho, tu é uma das pessoas mais extraordinárias que conheço. Por isso, não me entendo. Não entendo qual é o motivo. Sei que é o que sinto...
Por favor, não venha atrás de mim. Vai ser pior pra nós dois. Tentemos, a partir do dia que a tristeza for embora, viver! Escreva! Faça o mundo te conhecer. Pare de lamentar. Seja feliz! Eu te amo feliz! Eu quero te ver feliz. E acho que comigo, não fica mais como era. Hoje, sou uma doce recordação, nada mais.
Vai! Vive, Simão! Eu espero por isso.

Um beijo,
Te amo,
Lívia Pires.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Impressões de Januário sobre as coisas da vida

Impressão 10

Januário encontrou-a.
Ela perguntou, como sempre:
- Como estás?

Januário, sem paciência para as mesmas respostas às mesmas perguntas, teve um lampejo de coragem:
- Não muito diferente desde a última vez que perguntaste.
- Estás diferente, de certeza.

E Januário viu que ela tinha razão.

sábado, 28 de maio de 2011

Simão e a lividez

"Simão e Lívia"
Voltava, então, de onde percorri a madrugada toda. Com a derrota estampada na face, com a fadiga, com reação à nada. Com a última frase a repetir: "...eu não te vi mais".
A manhã já estava diferente e a calma da aurora dava lugar ao calor angustiante. De repente, vi-me como meus personagens, minhas imagens, meus sonhos...presos ao nada. Sem passado e nem futuro.
Seguia, sem pressa até o ponto de onde comecei. E como andei! Ah, pois sim.
Ao chegar na cidade, dois minutos antes da hora do almoço, naquela mesma entrada que tu me fazia a pergunta perplexa, havia uma aglomeração. O transformador desistiu e fez o asfalto ficar mais negro ainda com as marcas das explosões de ontem pra hoje.
Eu via sem olhar. Fitava os semblantes horrorizados, os semblantes horríveis que dá-se a qualquer aglomeração, qualquer motim e revolução. Ah, desgostava de todos. É como se todos fossem culpados da minha fadiga.
Toda aquela adrenalina da madrugada anterior, naquela sensação de te ver e poder ir te ver, tudo aquilo desvanecia. Sentia uma culpa de algo que não sabia o que era, julguei-me culpado. Todos os passos que me faziam voar pela madrugada, nesta manhã, faziam arrastar-me numa lentidão infinita.
Alguém me viu e comentou algo. Ouvi meu nome soar baixo por entre todos. Com o S acentuado. Eu continuava com uma firmeza sem muita consistência, era com o olhar voltado para baixo e o cansaço a me fazer repetir a última frase...
"...não te vejo mais."

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Impressões de Januário sobre as coisas da vida

Impressão 9

Januário, diante daquela fatídica conclusão, resolveu escrever aquilo e saiu qualquer coisa assim:
Escrevo nada sobre o que sou, nada sei do que sou, não sei de nada...o caso é que sou Januário Cabeça Tronco e Membros, sem Teixeiras ou Gonçalves. Escrevo nada sobre o nada.
Enfadado, amassou o papel que escrevia e, resignado, pensou: "escrever é uma droga...vicia."
Ainda sem correr ou sem parar. Januário. Mais uma.

Impressões de Januário sobre as coisas da vida

Impressão 8

Januário percebeu, finalmente, do que é feito.
Cabeça, pescoço, tronco e membros. E pouco mais.

"É Januário...", pensou.

O cavaleiro

Derrubou tudo o que trazia à mão, por causa duma entrada atravessada de outro cavaleiro.
Derrubou, sem derrubar-se. Puxou as rédeas do cavalo, que levantou as patas dianteiras em protesto. Vinha rápido. Derrubou o que segurava.
Quando viu tudo esparramado no chão, viu também o outro cavaleiro tentar desculpar-se sem olhar para trás. Também vinha rápido.
Entretanto, o cavaleiro notou algo a mais: não caíra.
Desceu do cavalo, tratou de pegar o que derrubou e jogar para longe o que carregava, para não atrapalhar outro que passasse.
Montou outra vez e continuou o seu marchar. Para qualquer lugar que não sei...

terça-feira, 17 de maio de 2011

na casa do Mascarenhas - Quarto de dormir 2

Já não guardo lixo por baixo da cama.
Coloquei o colchão no chão e emprestei a cama a um amigo.
Tenho, agora, o lixo empilhado pelos lados, no chão.
O de cima também.

domingo, 15 de maio de 2011

Impressões de Januário sobre as coisas da vida

Impressão 7

Januário, o velho e bom Januário, irrita-se terrivelmente com ex-amores que não se vão.
Apesar de estar em uma fase mais sincera, "mais Januário", como ele gosta de dizer aos poucos amigos, não consegue ainda colocar todas as coisas desarrumadas nos seus devidos lugares.
Ele não quer assumir para ninguém, mas é assim que é.
E fica na dúvida se isso faz dele um homem menos sincero. "Menos Januário", como não gosta de dizer.

Faz tempo que a gente cultiva.

Quero ser.

Dava-te banho com água quente.
E arrancava os desenhos da tua pele com as minhas unhas
e com os nós dos dedos.

E vou para o duche a pensar em ti,
e no teu corpo desenhado,
e na tua pele ensaboada.
E nos sinais do teu pescoço.

Queria que me visses algum dia...
a mim e ao teu efeito em mim.

Próteses

Fiz-me aquilo a lembrar-me de ti.
Próteses pra potencializar os sentidos.

Pensei
em extensões para os dedos,
em saltos gigantes para passos longos,
em roupas para rolar,
em rodas para ancas.

Já não caibo em mim. Há tempos.

Tenho andado com isso na cabeça e sabe bem dizer-te.
Acho que por nos termos aproximado.

Somos quem temos.

na casa do Mascarenhas - Quarto de dormir

Guardo lixo, por baixo da cama.
Livros não lidos, tapetes emprestados, chinelos que brilham no escuro.
Caixas com roupa para o frio, caixas com roupa para o frio, caixas com roupa.
Caixas com tapetes emprestados
e lixo.
Por baixo da cama guardo lixo. E por cima também.

sábado, 7 de maio de 2011

ô pá

Escrever, para mim, é outra onda.
Tenho fases intensas e curtas,
intercaladas por grandes nadas.

Nadas necessários e precisos.

Meus nadas.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Simão e Lívia

A cidade acabava numa rua, que se tornava uma estrada. Esta era bem escura. De uma estação de energia, faiscava uns raios para o meio dela, um perigo. Tu mantinha o passo e corria pra lá, como se aquilo fosse a estrada mais segura. Era a mais escura, iluminada pelos raios de um transformador.
Eu gritei: "Lívia!", tu continuou.
Eu gritei, outra vez, mais alto: "Lívia! Volta aqui." Tu continuou.
Na terceira vez, gritei hesitante...foi quando tu parou e olhou pra trás. Tirou os fones do ouvido, olhou pra mim com estarrecimento, a uns cem metros de vantagem.
"Ainda me segue, Azevedo?", tu me perguntou.
E eu respondi com as águas nos olhos, daquela chuva que agora caía, respondi com um titubear e sem sair voz alguma. Tu virou-se pra estrada escura e continuou a correr placidamente a passos firmes.
Desta vez, não fiquei parado, mas olhei pra trás ainda. E, quando olhei pra frente novamente, praquela estrada, nem via mais algum sinal. Esperei o relampejar do transformador. Não te via mais. E entrei na estrada sem temor algum, agora. Corri, com uma força acima do normal.
Corri até amanhecer e quando vi, nem controlava mais os meus passos. A estrada, antes escura e insegura, mostrava-se linda, como numa beira destas que amanhece depois de chover, um sol preguiçoso e a vida a acordar. Eu corria e via tudo, só não te via e isso me fazia apressar o passo...

...não te vi mais.

sábado, 23 de abril de 2011

Impressões de Januário sobre as coisas da vida

Impressão 6

O velho morreu e Januário teve que resolver. Era o novo que parecia velho. Chorou um pouco e não conseguiu voltar à casa. Resolveu que estava na hora de mudar de novo e sem choro. Depois da correria, foi a vida contemplativa, agora era a hora da mudança. A mudança assaz. Apaixonada!
Januário não está de luto oficial, não suporta isso. E, agora, ele mudou. Acha que é melhor viver, sem correr e sem parar. Correr demais, não o fez pensar no que precisava. Parar demais, não o fez correr atrás do que precisava. Ainda assim, não esboça ressentimento do passado, é que ele não gosta de lutos.
Januário vai correr e parar, nada demais, nada de mais.

Vai, Januário! O mundo te aguarda!

Ao Mascarenhas

Eu, Mascarenhas, ando, há tempos, sem ter o que dizer. Mas, vês que saio de São Tomé. Resolvi, desbravar os meus limites. Vou ao mundo buscar...nada. Afinal, é disto tudo o que se trata.
Estou com a mala pronta, levo um caderno e um notebook, talvez, escreva nada ou escreva sobre nada. Manda-me um e-mail, se tiver qualquer coisa ou coisa alguma por fazer.
Primeiro, vou ao continente ao lado, o que eles chamam África. E não espero qualquer notícia. Tenho nada a dizer, nada a fazer.